A campainha tocou e pulverizou o silêncio que me cercava. A reação foi imediata: arregalei os olhos no susto e trinquei os dentes. Acordei desnorteado.
Que horas são? Que dia é hoje?
Voltei a mim e fiquei de pé. Lembrei que não costumava usar relógio. Também lembrei do dia. Era sábado e o sol na minha janela indicava que não era tão cedo.
Outra vez a campainha. Que inferno!
Fui ao banheiro e joguei água no rosto. Peguei um boné desbotado do Chicago Bulls e berrei:
- Já vou.
Andei trôpego que nem o personagem bêbado de Chico Buarque em "Construção" e cheguei ao olho mágico da porta. Pela imagem arredondada reconheci as minhas vizinhas gêmeas. Eram duas garotinhas de uns oito anos de idade. Pelo menos eu já sabia que elas queriam alguma coisa de mim. Em suas últimas visitas, as gurias vieram para me vender a rifa de uma bicicleta, descolar algumas balas no dia de São Cosme e São Damião, pedir agasalhos para a campanha de inverno da igreja ou exigir minha assinatura em um abaixo-assinado para que os Backstreet Boys voltassem ao Brasil.
- Olá menininhas.
- Oi.
- Querem entrar?
- Não precisa.
- É jogo rápido - a outra emendou.
- O que eu posso fazer por vocês?
- Gostaríamos que você levasse essa carta ao correio para nós.
- Sim, por favor. Já está selada, mas se precisar de outro selo para o Pólo Norte você paga e pega o recibo. Depois a gente acerta – uma falava e a outra completava. Uma das duas gêmeas me estendeu um envelope cor-de-rosa devidamente selado.
- Como assim Pólo Norte?
- É pro Papai Noel.
- Pra quem haveria de ser no Pólo Norte? Para o Rodolfo, a Rena do Nariz Vermelho?
Eu ainda estava acordando, mas logo me situei. Já era dezembro. Nessa hora pensei em algo óbvio, mas que nunca havia me passado pela cabeça. Será que Mamãe Noel, os duendes e as renas ficam tristes por nunca receberem cartas das crianças? Só o Bom Velhinho é procurado, enquanto que toda a sua equipe operacional fica praticamente anônima. Taí um caso a se pensar, mas em outra hora.
- Por que a mãe de vocês não coloca essa cartinha no correio? – perguntei.
- Porque ano passado pegamos mamãe e papai lendo o nosso pedido.
- Isso mesmo. Foi um baita flagra. Eles tiveram que gastar dinheiro com os presentes, pois não quisemos mais escrever outra carta. A confiança é conquistada depois de um tempão, mas é perdida muito rapidamente.
Garotas espertas.
- E por que vocês confiam em mim?
- Porque você parece legal.
- Você já comprou nossas rifas, doou casacos pra campanha de inverno da igreja, arranjou vários chocolates no dia de Cosme e Damião...
- E também assinei o abaixo-assinado dos Backstreet Boys - completei. Eu havia me tornado um homem explorado por duas gêmeas que nem tinham completado uma década de vida.
- Isso.
- Isso.
- Tudo bem. Eu envio hoje mesmo.
- Obrigada.
- Obrigada.
Elas deixaram a carta comigo e se despediram. Dei tchauzinho e percebi que nem sabia o nome das duas vizinhas gêmeas. Tudo bem. Elas não sabiam o meu também.
O envelope tinha aroma artificial de morango e eu podia ler no campo do destinatário:
"Para o querido
Papai Noel
Pólo Norte – Norte do Mundo"
Tudo escrito com letrinhas redondas de criança.
Quando foi que eu descobri que Papai Noel não existe? Hum, quando?
Ah, lembrei. Foi traumático!
Assim como as minhas vizinhas gêmeas, eu também fazia meus pedidos ao Noel e entregava aos cuidados dos meus pais. Ao contrário das garotas, eu tinha a preocupação de ir com papai até o correio, garantindo que o bilhete não se extraviaria. Eu voltava feliz da vida e na noite de Natal meu tio Joca, irmão de mamãe, era sempre o primeiro a ouvir o Bom Velhinho desembarcando no meu quarto. Eu corria para lá e conseguia vê-lo sumindo na janela com sua longa barba branca, casaco vermelho e testa suada.
"Tadinho do Papai Noel. Todo cheio de casacos nesse verão", eu pensava.
Tio Osmar, papai, mamãe e a primalhada toda vinham logo em seguida para abrirmos os presentes. A gente brincava até as duas da madrugada. Uau, duas da madrugada era horário de gente grande. Eu nem sabia o que poderia acontecer na cidade às duas da madrugada.
Fui crescendo e os Natais eram sempre iguais. Tio Joca percebia a aproximação e dava o sinal para mim. Eu via Papai Noel rapidamente e me despedia feliz da vida. Teve um dia que ele até me telefonou para se certificar que os presentes estavam certos. Foi a glória. Eu bati um papo com o próprio Noel por telefone.
Mas houve um ano em que a molecada do colégio me deixou com a pulga atrás da orelha.
Era começo de dezembro e a árvore já estava montada. Mamãe e eu chegamos da escola e eu fiquei olhando pra ela sem saber por onde começar.
- O que você quer, menino? – minha mãe farejava meus receios.
- Papai Noel não existe, né? Ele é só um garoto-propaganda da Coca-Cola, né? Se fosse da Pepsi, ele seria azul, né? – metralhei.
- Quem te contou isso?
- Não interessa. Eu conto o milagre, mas não revelo o santo.
- O que você acha?
- Eu acho que faz sentido. Como Papai Noel pode estar no shopping, na loja de sapatos da esquina e na porta da escola ao mesmo tempo? Ele ganha cachê para fazer comercial da Mesbla?
Criança é um bicho cheio de questões.
- Meu filho, senta aqui – mamãe arrastou uma cadeira. Ficamos sentados à mesa da cozinha em um breve silêncio.
- E aí? Existe ou não existe? Não me enrola.
- Você está grandinho. Não preciso mais mentir pra você.
- Então?
- Não existe.
- Poxa, mãe. Vocês me enganaram todos esses anos? – as lágrimas começaram a rolar pelo meu rostinho bochechudo.
- Quem disse que isso é enganação? Papai Noel existe na imaginação das crianças. Ele faz parte da infância. Quando os garotinhos descobrem que ele é uma lenda é sinal de que estão ficando mocinhos – o discurso começou bem clichê, mas terminou eficiente.
- E quem era aquele que aparecia na minha janela? – eu queria detalhes da trama.
- Seu tio Osmar.
- Pô, o tio Osmar é magro que nem um bambu.
- Ele usa travesseiro na barriga.
- Impostor de araque.
- E quando Papai Noel me telefonou?
- Era o Osmar na extensão.
- Caramba, mãe. Quem fabrica os meus presentes? Eles não vêm do Pólo Norte?
- Na verdade, eles são fabricados pela Estrela e vêm da Zona Franca de Manaus.
Realmente mamãe estava desmascarando toda a farsa.
- E o Bicho Papão?
- Esse existe.Se você fizer malcriações ele te carrega no saco para bem longe.
- Sacanagem.
- É vida. Agora você sabe a verdade, mas seu irmãozinho e seus priminhos continuam acreditando no Bom Velhinho. Seria maldade sua se você acabasse com os sonhos deles. Com o tempo eles descobrem tudo. Aconteceu com você e acontecerá com eles.
Nunca mais vi o tio Osmar com os mesmos olhos. O cara foi o Papai Noel durante anos. Naquele Natal, não fui o primeiro avisado da chegada dos presentes. Vi que estava crescendo e poucas vezes isso foi tão evidente. Tão cristalino e doloroso.
Agora eu estava com a cartinha das minhas vizinhas gêmeas nas mãos.
Não pensei duas vezes. Troquei de roupa e corri para o correio.
Que horas são? Que dia é hoje?
Voltei a mim e fiquei de pé. Lembrei que não costumava usar relógio. Também lembrei do dia. Era sábado e o sol na minha janela indicava que não era tão cedo.
Outra vez a campainha. Que inferno!
Fui ao banheiro e joguei água no rosto. Peguei um boné desbotado do Chicago Bulls e berrei:
- Já vou.
Andei trôpego que nem o personagem bêbado de Chico Buarque em "Construção" e cheguei ao olho mágico da porta. Pela imagem arredondada reconheci as minhas vizinhas gêmeas. Eram duas garotinhas de uns oito anos de idade. Pelo menos eu já sabia que elas queriam alguma coisa de mim. Em suas últimas visitas, as gurias vieram para me vender a rifa de uma bicicleta, descolar algumas balas no dia de São Cosme e São Damião, pedir agasalhos para a campanha de inverno da igreja ou exigir minha assinatura em um abaixo-assinado para que os Backstreet Boys voltassem ao Brasil.
- Olá menininhas.
- Oi.
- Querem entrar?
- Não precisa.
- É jogo rápido - a outra emendou.
- O que eu posso fazer por vocês?
- Gostaríamos que você levasse essa carta ao correio para nós.
- Sim, por favor. Já está selada, mas se precisar de outro selo para o Pólo Norte você paga e pega o recibo. Depois a gente acerta – uma falava e a outra completava. Uma das duas gêmeas me estendeu um envelope cor-de-rosa devidamente selado.
- Como assim Pólo Norte?
- É pro Papai Noel.
- Pra quem haveria de ser no Pólo Norte? Para o Rodolfo, a Rena do Nariz Vermelho?
Eu ainda estava acordando, mas logo me situei. Já era dezembro. Nessa hora pensei em algo óbvio, mas que nunca havia me passado pela cabeça. Será que Mamãe Noel, os duendes e as renas ficam tristes por nunca receberem cartas das crianças? Só o Bom Velhinho é procurado, enquanto que toda a sua equipe operacional fica praticamente anônima. Taí um caso a se pensar, mas em outra hora.
- Por que a mãe de vocês não coloca essa cartinha no correio? – perguntei.
- Porque ano passado pegamos mamãe e papai lendo o nosso pedido.
- Isso mesmo. Foi um baita flagra. Eles tiveram que gastar dinheiro com os presentes, pois não quisemos mais escrever outra carta. A confiança é conquistada depois de um tempão, mas é perdida muito rapidamente.
Garotas espertas.
- E por que vocês confiam em mim?
- Porque você parece legal.
- Você já comprou nossas rifas, doou casacos pra campanha de inverno da igreja, arranjou vários chocolates no dia de Cosme e Damião...
- E também assinei o abaixo-assinado dos Backstreet Boys - completei. Eu havia me tornado um homem explorado por duas gêmeas que nem tinham completado uma década de vida.
- Isso.
- Isso.
- Tudo bem. Eu envio hoje mesmo.
- Obrigada.
- Obrigada.
Elas deixaram a carta comigo e se despediram. Dei tchauzinho e percebi que nem sabia o nome das duas vizinhas gêmeas. Tudo bem. Elas não sabiam o meu também.
O envelope tinha aroma artificial de morango e eu podia ler no campo do destinatário:
"Para o querido
Papai Noel
Pólo Norte – Norte do Mundo"
Tudo escrito com letrinhas redondas de criança.
Quando foi que eu descobri que Papai Noel não existe? Hum, quando?
Ah, lembrei. Foi traumático!
Assim como as minhas vizinhas gêmeas, eu também fazia meus pedidos ao Noel e entregava aos cuidados dos meus pais. Ao contrário das garotas, eu tinha a preocupação de ir com papai até o correio, garantindo que o bilhete não se extraviaria. Eu voltava feliz da vida e na noite de Natal meu tio Joca, irmão de mamãe, era sempre o primeiro a ouvir o Bom Velhinho desembarcando no meu quarto. Eu corria para lá e conseguia vê-lo sumindo na janela com sua longa barba branca, casaco vermelho e testa suada.
"Tadinho do Papai Noel. Todo cheio de casacos nesse verão", eu pensava.
Tio Osmar, papai, mamãe e a primalhada toda vinham logo em seguida para abrirmos os presentes. A gente brincava até as duas da madrugada. Uau, duas da madrugada era horário de gente grande. Eu nem sabia o que poderia acontecer na cidade às duas da madrugada.
Fui crescendo e os Natais eram sempre iguais. Tio Joca percebia a aproximação e dava o sinal para mim. Eu via Papai Noel rapidamente e me despedia feliz da vida. Teve um dia que ele até me telefonou para se certificar que os presentes estavam certos. Foi a glória. Eu bati um papo com o próprio Noel por telefone.
Mas houve um ano em que a molecada do colégio me deixou com a pulga atrás da orelha.
Era começo de dezembro e a árvore já estava montada. Mamãe e eu chegamos da escola e eu fiquei olhando pra ela sem saber por onde começar.
- O que você quer, menino? – minha mãe farejava meus receios.
- Papai Noel não existe, né? Ele é só um garoto-propaganda da Coca-Cola, né? Se fosse da Pepsi, ele seria azul, né? – metralhei.
- Quem te contou isso?
- Não interessa. Eu conto o milagre, mas não revelo o santo.
- O que você acha?
- Eu acho que faz sentido. Como Papai Noel pode estar no shopping, na loja de sapatos da esquina e na porta da escola ao mesmo tempo? Ele ganha cachê para fazer comercial da Mesbla?
Criança é um bicho cheio de questões.
- Meu filho, senta aqui – mamãe arrastou uma cadeira. Ficamos sentados à mesa da cozinha em um breve silêncio.
- E aí? Existe ou não existe? Não me enrola.
- Você está grandinho. Não preciso mais mentir pra você.
- Então?
- Não existe.
- Poxa, mãe. Vocês me enganaram todos esses anos? – as lágrimas começaram a rolar pelo meu rostinho bochechudo.
- Quem disse que isso é enganação? Papai Noel existe na imaginação das crianças. Ele faz parte da infância. Quando os garotinhos descobrem que ele é uma lenda é sinal de que estão ficando mocinhos – o discurso começou bem clichê, mas terminou eficiente.
- E quem era aquele que aparecia na minha janela? – eu queria detalhes da trama.
- Seu tio Osmar.
- Pô, o tio Osmar é magro que nem um bambu.
- Ele usa travesseiro na barriga.
- Impostor de araque.
- E quando Papai Noel me telefonou?
- Era o Osmar na extensão.
- Caramba, mãe. Quem fabrica os meus presentes? Eles não vêm do Pólo Norte?
- Na verdade, eles são fabricados pela Estrela e vêm da Zona Franca de Manaus.
Realmente mamãe estava desmascarando toda a farsa.
- E o Bicho Papão?
- Esse existe.Se você fizer malcriações ele te carrega no saco para bem longe.
- Sacanagem.
- É vida. Agora você sabe a verdade, mas seu irmãozinho e seus priminhos continuam acreditando no Bom Velhinho. Seria maldade sua se você acabasse com os sonhos deles. Com o tempo eles descobrem tudo. Aconteceu com você e acontecerá com eles.
Nunca mais vi o tio Osmar com os mesmos olhos. O cara foi o Papai Noel durante anos. Naquele Natal, não fui o primeiro avisado da chegada dos presentes. Vi que estava crescendo e poucas vezes isso foi tão evidente. Tão cristalino e doloroso.
Agora eu estava com a cartinha das minhas vizinhas gêmeas nas mãos.
Não pensei duas vezes. Troquei de roupa e corri para o correio.
HE-MAN?
Amiguinho, você deu um novo sentido à vida do He-Man. Eu estava de saco cheio de ser lembrado apenas naquelas malditas festas Ploc. Espero que possamos continuar batendo essa bola e seus leitores continuem mandando suas dúvidas para desafiar minha infinita sabedoria. A moral dessa vez é: Feliz Natal para todos!!! Ho Ho Ho!!!
7 comentários:
Sacanagem essas histórias pra enganar crianças. Nos meus tempos de criança, todas as mães da rua q eu morava elegeram um senhor misterioso que passava por lá de vez em quando como o "velho do saco", que capturava crianças num saco depois as jogava no rio. A criançada simplesmente corria desesperadamente para suas casas quando o simpático senhor aparecia. Passei anos acreditando nisso :-D
Me diverti com o texto. Boas festas aí e cuidado com o bicho-papão.
É uma pena que a Estrela agora virou Fischer Price e Mattel e os brinquedos não são mais fabricados em Manaus mas em outra terra encantada, a China!
Amiguinho He-Man, dia desses tomei um susto e quase morri numa grana (ainda vou morrer mas naquele dia tinha pouca) me deparei com um box de DVDs de seus desenhos, você poderia ter avisado-nos, aliás saiu um da senhora sua irmã também, a venda nas melhores casa do ramo...
Rapá seus textos são ótimos!!! Sei que a relação entre você e seu Tio Osmar nunca foi a mesma depois dessa relação...rssss... mas sabe que não lembro como foi que eu descobri a verdade sobre o Noel? Ah, não faz diferença... Mas o negócio é que ainda acredito no He-mam...rsss... Bom passei para desejar um feliz ano novo, natal já foi, né? E para dizer que te favoritei no meu blog... Aguardo um avisita também... http://felipenove.blog.terra.com.br
*revelação... (ao invés de relação...)
BOB, boas festas para ti também. Pode deixar que eu tomo cuidado com o Bicho Papão.
OSNI, He-Man é artigo de luxo. Se quiser, tem que coçar o bolso.
FELIPE, muito obrigado pela visita, pela indicação, pelo comentário e, principalmente, pelos olhos atentos.
Amei este post...
Estou mega curiosa pra saber o que vc fez com a cartinha das meninas...
Levou pros pais delas? Dezendo o que? suas filhas me deram por que não confiam em vcs?
Gosto de um um ser humano capaz de despertar a confiança das crianças. ponto pra você
fui quase uma mongolóide quando o assunto é papai noel... deixei de acreditar em PaPai Noel com 9 anos. Pra você ver como o adiantado da idade foi sério, eu não precisei que ninguém me contasse, simplesmente cheguei numa maturidade logica que me levou a juntar pontos e concluir isso sozinha.
Ainda adoro os natais e o fato de continuarmos sentando em volta da árvore para abrir os presentes :)
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